Paralisados ou polarizados

Feb 21, 2025
10 min
Paralisados ou polarizados

Diante da realidade saturada de perplexidade e confusão, como podemos manter-nos informados e críticos, mas não ansiosos e assustados?

Debato-me diariamente com esta pergunta inquietante e julgo saber a resposta. Mas a própria resposta, aparentemente simples e tranquilizante, dá trabalho a concretizar, ao contrário do que ressoa.

Por cima do pórtico do inferno mais famoso da literatura, o de Dante Alighieri, lê-se Deixai toda a esperança, vós que entrais” (Divina Comédia, canto III). Perante o pasmo do florentino com estas duras palavras, Virgílio, o seu guia, diz-lhe para nada temer, pois a sua alma ainda não perdera o livre-arbítrio. Aquele era, como lhe explica mais adiante, o "destino daquelas almas que não procuraram fazer o bem, mas também não buscaram fazer o mal."

É por isso que, por mais simplicidade e tranquilidade que a palavra Esperança nos possa trazer, ela envolve muito trabalho e dedicação.

Às portas da geena, Virgílio define a Esperança como ação, apresentando a Dante os seus habitantes como aqueles que nela viram apenas resignação.

O pedagogo Paulo Freire ajuda-nos a sintonizar com esta ideia: "É preciso ter esperança, mas ter esperança do verbo esperançar; porque tem gente que tem esperança do verbo esperar. E esperança do verbo esperar não é esperança, é espera." Ou seja, por mais reconfortante que a Esperança possa ser, ela só é efetiva se nos puser em movimento.

Retomo então o meu raciocínio inicial. Diante da realidade saturada de perplexidade e confusão, é preciso ação e não resignação, pois esta não é inócua. Martin Luther King também o expressou ao afirmar que "as nossas vidas começam a acabar no dia em que nos calamos sobre as coisas que realmente importam."

Se a fuga, omissão ou desconsideração são sintomas dessa resignação, a pressão - exarcebada no mundo digital - para aderir, tomar partido e militar, conduz facilmente à armadilha da polarização.

Jonathan Haidt, autor de "The Righteous Mind: Why Good People are Divided by Politics and Religion", diz que "a realidade social é tão complexa que, se nos juntamos a um grupo ou a outro, tornamo-nos especializados em detectar certos padrões, mas ficamos cego para outros."

Para ajudar a pensar em como agir, perante tudo isto, mantendo a "higiene mental", recorro aos três fundamentos da filosofia Ubuntu, propondo que estes possam ser os reguladores da nossa conduta relacional, tanto no quotidiano presencial, quanto na nossa existência digital:

1) Construção de Pontes

A dignidade do outro deve ser sempre promovida dentro dos princípios da justiça, solidariedade e reconciliação. Mas construir pontes exige mais do que boas intenções: requer escuta ativa e disposição para acolher genuinamente, mesmo quando discordamos. Num mundo onde a polarização se alimenta de muros e trincheiras, a verdadeira coragem está em dialogar sem ceder ao cinismo ou à intolerância. A conexão humana é a única ferramenta capaz de desfazer preconceitos e reconstruir um tecido social saudável.

2) Ética do Cuidado

O cuidado, a atenção, a proteção e a relação, são intrínsecos à essência do ser Humano. Cuidar de mim é essencial para poder cuidar dos outros e do planeta, dando à vida sentido e propósito, tantas vezes enublado ou escondido por uma sociedade que se foi desumanizando. Preservar o equilíbrio mental e emocional é essencial para que o cuidado seja autêntico e transformador, bem como para saber quando agir e quando recuar para recuperar forças.

3) Liderança Servidora

Numa era de egos inflados e discursos inflamados, a liderança servidora surge como um antídoto contra o individualismo e a manipulação. O líder servidor é aquele que cria espaços onde os outros podem surgir e focarem-se no bem comum, permitindo que cada um possa mostrar a melhor versão de si mesmo. A liderança servidora é essencial para construirmos comunidades resilientes.

Apesar de difícil e exigente, acredito que regular as nossas interações, presenciais ou digitais, por estes três fundamentos da filosofia Ubuntu, é a chave para relações saudáveis e construtoras de paz. Afinal, Ubuntu é a essência do Ser Humano, e é na fidelidade a essa essência que encontraremos o ponto de equilíbrio da nossa existência em sociedade.

Autor: Rui Nunes da Silva

Instituto Padre António Vieira
Organização

Apoie a nossa missão

Descubra como pode contribuir para as nossas iniciativas e fazer a diferença na comunidade.